sábado, 31 de março de 2012

o homem que não faz falta


“Peça Inacabada para piano mecânico”, 1977, de Nikita Mikhalkov. Uma comédia trágica desenvolvida a partir de uma reunião de famílias aristocráticas em uma casa de campo. Como o próprio crédito inicial aponta, o filme foi baseado em trechos de peças de Anton Tchekhov. O filme se desenvolve enquanto a família Seminovitch, anfitriã, recebe seus convidados, dentre eles Mijail Platonov, “Micha”, um professor aldeão bonachão recém-casado que aparenta levar a vida à maneira de um bon vivant, mas que aos poucos revela que não vê sentido em sua profissão e, além disso, ressente-se de um amor antigo quando encontra Sofia Egórovna, uma ex-colega estudante. A partir do encontro destes antigos amantes, vamos recebendo outros convidados rumo a um generoso jantar.


Logo no primeiro plano, a decupagem de Mikhalkov registra um elemento tchecoviano: o distanciamento. A primeira sequência nos apresenta o grande casarão a partir de diferentes pontos de vista, cada vez mais próximo, mas ainda à distância, além do lago, do bosque. É ali, naquela ilha, naquele reduto que se desenvolve nossa história, a trama de uma reunião familiar em que as pessoas assistem o declínio de seus valores morais, a decrepitude de seus padrões simbólicos e culturais, o desatar de seus laços pessoais e afetivos. Feito isso, mais um fator diegético - além do lago e do bosque fechado: o monóculo usado por Ivanovicht para reconhecer a chegada de Micha e preparar uma barulhenta recepção para seu cunhado. Na sequencia, este mesmo monóculo será utilizado pelo próprio Micha para identificar a aproximação de Sofia, que reconhece mesmo à distância, ainda sendo trazida no barco que atravessa o rio até a casa. Logo após este close subjetivo de Micha através do monóculo, nós o acompanhamos até uma pequena adega sob a escadaria da casa, ele toma uns tragos e se prepara para aquela que ele considera uma boa surpresa – rever um amor antigo – e que será, digamos, o leitmotiv das relações afetivas do filme, posto que é uma relação trágica.

Em termos de roteiro, não nos espanta que, de início, os assuntos prediletos da família anfitriã sejam as vidas, virtudes e fraquezas de seus próprios convidados. E, de mais a mais, o que há de mais em se falar da vida alheia, de forma gratuita, mesmo que para fazer um balanço trágico de sua existência? Quando vemos isto à beira da mesa de chá dos Seminovitch, não nos damos conta da alta octanagem que este tipo de conversa pode ter entre os convidados, dentro de casa, apertados entre os aposentos repletos de mobílias aristocráticas, numa situação em que não há espaço - distanciamento - entre as pessoas. Então, é neste momento que nos vemos com eles numa zona amoral, incapazes de distinguir os limites, as lembranças pessoais das memórias coletivas, as emoções dos desejos. Um exemplo dessas pequenas tragédias que acometem aqueles aristocratas está no desesperado discurso bismarckiano que o médico Pavel Petrovich faz à mesa do lauto jantar se perguntando “onde estão os Pushkin, os Gógol e os Turgueniev” de seu tempo? Revoltado com a “confraternização da nobreza com os taberneiros”, ele continua seu discurso galtoniano e irascível, através do qual aflora, quem sabe, a inconsciência daquela aristocracia irritada com seu declínio e angustiada com os rumos daquele elefante branco que era a Rússia no fim do século dezenove.

Enfim, para encerrar, parafraseio o Dr. Petrovich que, no auge de sua ira durante o jantar, chegou a dizer que Platonov era “o homem que não faz falta”. Ao contrário, Nikita Mikhalkov, descendentes de grande mestres da pintura e dramaturgia, foi um homem forte do Cinema Soviético que se envolveu com a complicada máquina burocrática da Mosfilm, ainda assim conseguiu realizar obras fundamentais para a compreensão da maturidade da Rússia Soviética e do seu declínio. Através de “O Sol Enganador” (1994), vemos o impacto do stalinismo no seio de uma tradicional família camponesa. Além disso, é em “Anna, dos 6 aos 18” (1980 a 1991) que podemos  compreender como o cinema, particularmente o documentário, é intrinsecamente uma questão biográfica.

Abraços!
Fábio Monteiro