“Peça Inacabada para
piano mecânico”, 1977, de Nikita Mikhalkov. Uma comédia trágica desenvolvida a
partir de uma reunião de famílias aristocráticas em uma casa de campo. Como o
próprio crédito inicial aponta, o filme foi baseado em trechos de peças de Anton
Tchekhov. O filme se desenvolve enquanto a família Seminovitch, anfitriã,
recebe seus convidados, dentre eles Mijail Platonov, “Micha”, um professor
aldeão bonachão recém-casado que aparenta levar a vida à maneira de um bon vivant, mas que aos poucos revela que
não vê sentido em sua profissão e, além disso, ressente-se de um amor antigo
quando encontra Sofia Egórovna, uma ex-colega estudante. A partir do encontro
destes antigos amantes, vamos recebendo outros convidados rumo a um generoso
jantar.
Logo no primeiro
plano, a decupagem de Mikhalkov registra um elemento tchecoviano: o
distanciamento. A primeira sequência nos apresenta o grande casarão a partir de
diferentes pontos de vista, cada vez mais próximo, mas ainda à distância, além
do lago, do bosque. É ali, naquela ilha, naquele reduto que se desenvolve nossa
história, a trama de uma reunião familiar em que as pessoas assistem o declínio
de seus valores morais, a decrepitude de seus padrões simbólicos e culturais, o
desatar de seus laços pessoais e afetivos. Feito isso, mais um fator diegético -
além do lago e do bosque fechado: o monóculo usado por Ivanovicht para reconhecer
a chegada de Micha e preparar uma barulhenta recepção para seu cunhado. Na
sequencia, este mesmo monóculo será utilizado pelo próprio Micha para identificar
a aproximação de Sofia, que reconhece mesmo à distância, ainda sendo trazida no
barco que atravessa o rio até a casa. Logo após este close subjetivo de Micha
através do monóculo, nós o acompanhamos até uma pequena adega sob a escadaria
da casa, ele toma uns tragos e se prepara para aquela que ele considera uma boa
surpresa – rever um amor antigo – e que será, digamos, o leitmotiv das relações afetivas do filme, posto que é uma relação
trágica.
Em termos de roteiro, não
nos espanta que, de início, os assuntos prediletos da família anfitriã sejam as
vidas, virtudes e fraquezas de seus próprios convidados. E, de mais a mais, o
que há de mais em se falar da vida alheia, de forma gratuita, mesmo que para fazer
um balanço trágico de sua existência? Quando vemos isto à beira da mesa de chá
dos Seminovitch, não nos damos conta da alta octanagem que este tipo de conversa
pode ter entre os convidados, dentro de casa, apertados entre os aposentos
repletos de mobílias aristocráticas, numa situação em que não há espaço -
distanciamento - entre as pessoas. Então, é neste momento que nos vemos com
eles numa zona amoral, incapazes de distinguir os limites, as lembranças
pessoais das memórias coletivas, as emoções dos desejos. Um exemplo dessas
pequenas tragédias que acometem aqueles aristocratas está no desesperado
discurso bismarckiano que o médico Pavel Petrovich faz à mesa do lauto jantar se
perguntando “onde estão os Pushkin, os Gógol
e os Turgueniev” de seu tempo? Revoltado com a “confraternização da nobreza com os taberneiros”, ele continua seu discurso
galtoniano e irascível, através do qual aflora, quem sabe, a inconsciência
daquela aristocracia irritada com seu declínio e angustiada com os rumos
daquele elefante branco que era a Rússia no fim do século dezenove.
Enfim, para encerrar,
parafraseio o Dr. Petrovich que, no auge de sua ira durante o jantar, chegou a
dizer que Platonov era “o homem que não
faz falta”. Ao contrário, Nikita Mikhalkov, descendentes de grande mestres
da pintura e dramaturgia, foi um homem forte do Cinema Soviético que se
envolveu com a complicada máquina burocrática da Mosfilm, ainda assim conseguiu
realizar obras fundamentais para a compreensão da maturidade da Rússia
Soviética e do seu declínio. Através de “O
Sol Enganador” (1994), vemos o impacto do stalinismo no seio de uma
tradicional família camponesa. Além disso, é em “Anna, dos 6 aos 18” (1980 a 1991) que podemos compreender como o cinema, particularmente o documentário,
é intrinsecamente uma questão biográfica.
Abraços!
Fábio Monteiro
Abraços!
Fábio Monteiro